segunda-feira, 3 de março de 2008

Sobre o futebol (ou: sobre a tarefa de escrever diariamente)

1.

Três textos e um bloqueio criativo... De fato, não está escrito em lugar algum que se, eventualmente, isto aqui não for atualizado não posso escrever nunca mais, ou que o bicho papão vem puxar meu pé durante o sono. Não. Ainda bem. E, afinal, não são os limites auto-impostos que são os mais difíceis de serem respeitados?

Pensando bem, não se trata exatamente de um bloqueio criativo. Eu poderia escrever páginas e mais páginas sobre meu passeio dominical em São Paulo e sobre minha experiência sociológico-futebolística. Trata-se, eu creio, de uma crise de falta de confiança na qualidade dos textos. Nem sempre é fácil escrever alguma coisa relevante, inteligente e inteligível; algo que seja importante para mim e para os outros. Noventa e nove por cento de baboseira, parlapatice e bravata para justificar um por cento de idéias relevantes ou frases bem construídas? Estou achando (particulamente hoje) que estou nessa.

2.

O passeio estava sendo engendrado há algum tempo. Não posso afirmar qual era a opinião dos outros envolvidos, mas para mim aquela era uma oportunidade ímpar. Assistir a um jogo de futebol, na arquibancada do estádio, sem quaisquer dos filtros possivelmente empregados pela televisão (meu único acesso prévio a este tipo de evento) era muito tentador. Do alto da minha petulância acadêmica, era como embarcar numa missão antropológica em um região distante. Era como conhecer um grupo selvagem em seu estado natural, em seu local de origem. Era uma viagem para uma terra desconhecida.

Como sempre acontece nas expedições, houveram preparativos. Jundiaí, colega de moradia e palmeirense em um estado de semi-fanatismo (ao menos no nível discursivo) serviria como guia. Ele seria a ligação entre dois mundos diferentes: o meu mundo, do futebol como uma atividade exótica e o mundo dos torcedores dedicados, com trajes uniformizados e gritos de guerra. Teoricamente, seu conhecimento do terreno também o qualificava como guia, mas os sucessivos infortúnios no trânsito de São Paulo demonstraram que, ao menos no que diz respeito ao trânsito, possuíamos praticamente a mesma perícia.

Ao contrário dos exploradores comuns, que normalmente arranjam-se avidamente para catalogar, fotografar e entrevistar, realizei uma preparação inversa. Um certo preconceito apitava como um alarme, dizendo que meu precioso celular com câmera digital deveria ficar em casa ou eu estaria fatalmente destinado a ser subtraído de minha posse. Mais tarde, me arrependi da decisão, mas prefiro acreditar que a ausência de artifícios do gênero apuraram minhas percepções. Houve também a preocupação para que minha roupa não tivesse nenhuma das cores "tribais" - verde, representando o Palmeiras e preto correspondendo ao Corinthians - de modo que uma identificação visual incorreta me tornasse vítima de alguma violência física por parte de algum torcedor mais exaltado. No decorrer da viagem ouvi, atento, aos episódios históricos e peculiaridades relatados por Ivo e Jundiaí, para que eu tivesse alguma familiaridade com a cultura específica do futebol.

3.

O tom episódico não caiu bem, eu creio. Muito empolado, falsamente pessoal. Parece uma narração em off de um documentário ruim. Mas como admitir meus preconceitos sem recorrer a este recurso? Como reconhecer que havia medo de ser roubado e espancado naquele espetáculo tipicamente brasileiro, tão estranho para mim? Como admitir que o filtro da cobertura esportiva da Rede Globo me privou (temporariamente, suponho) do bom senso e da verdadeira dimensão das coisas? Como separar minha curiosidade sociológica legítima da ambição intelectual e do sub-reptício preconceito sulista?

Ao optar por um relato assim rebuscado estou sendo duplamente desonesto: não admito que nem sempre posso escrever bem e não admito que tenho preconceitos que talvez sejam acobertados pela minha estimada e tão evocada curiosidade sociológica. E a confissão, por si, resolverá as distorções?

4.

Da maior parte do ambiente urbano de São Paulo pude apreender somente aquilo que vi do lado de dentro do carro: massiva urbanização, trânsito pesado, o odor pestilento do Rio Pinheiros. Acho que a coisa mais inteligente que me ocorreu, durante o trajeto, foi a perplexidade a respeito do volume de trabalho envolvido no planejamento e manutenção de um ambiente urbano tão grande e complexo; e aquela rede urbana é tão complexa quanto irreversível. Como poderia aquele conjunto inteiro funcionar?

A mesma perspectiva de uma rede social, ainda que de modo mais claro, me ocorreu conforme nos aproximávamos do estádio e do momento da partida. Mesmo dentro da cidade, pude perceber uma sociabilidade cujo centro espacial era o estádio, e cujo o momento de maior densidade era, de fato, os noventa minutos da partida de futebol. Trata-se de uma rede que vai de um estado difuso, para uma intensidade quase institucional e que depois vai desaparecendo lentamente, afrouxando seus laços.

Antes da partida existe, digamos, uma infra-estrutura, uma proto-rede. Os times de futebol não foram fundados naquele domingo. O estádio não foi construído naquela semana. As ruas, os comerciantes e os cambistas estavam lá antes do jogo e, com alguma sorte, estarão lá após a partida de futebol. É por razões específicas e vontades em comum que estes elementos reúnem-se no que estou chamando de "partida de futebol", numa disposição geográfica concêntrica ao redor do estádio. Alguns dos envolvidos beneficiam-se financeiramente desta rede social; os comerciantes das dezenas de barracas de alimentação das imediações, por exemplo. Outros integram aquele emaranhado por motivos psicológicos. A emoção da partida, o antagonismo entre as equipes e o uníssono dos gritos de torcida - que pude testemunhar da arquibancada superior, em posição quase paralela ao centro do gramado, de "dentro" da torcida palmeirense - atingem níveis de catarse semelhantes a um ritual religioso, suprindo talvez alguma necessidade psíquica dos envolvidos.

Durante a partida, no interior do estádio, era como se a vida exterior não importasse mais para as pessoas. O envolvimento com aquela rede, contingente e temporária, era elevado. As regras, normas e preceitos morais daquele ambiente pareciam valer muito mais do que a vida social do lado de fora. Torcedores de um lado, jogadores no centro do campo, o árbitro, os gandulas, os policias. Todos estavam ali, de um modo ou de outro, com papéis definidos e a atuação de cada um deles determinava o "formato" daquela rede. Não importa o quanto os envolvidos fossem diferentes e não-relacionados na vida cotidiana. Naquele momento, tinham identidades e papéis específicos. Naquele momento eles construíam a instituição do domingo de futebol.

Assim que terminou a partida, os policiais conduzindo os torcedores rivais através de vias urbanas distintas e distantes, evitando assim os confrontos físicos violentos, delimitavam o fim daquela rede e a presença de outra - o Estado. As identidades de corinthiano e palmeirense iam sendo lentamente decrescidas, dando lugar ao motorista, ao pai de família, ao trabalhador. Os elementos daquela rede específica, a rede do futebol entravam em suspensão. A rede voltava, lentamente, ao seu estado inicial.

Mas somente até o próximo domingo de clássico.

5.

Bloqueio criativo ou não, relato duvidoso ou não, o texto ficou longo. Espero que ele, ao menos, tenha cumprido seu objetivo inicial - informar sobre meu domingo no estádio do Morumbi, onde testemunhei a vitória do Palmeiras por um a zero, com um gol de Valdívia no segundo tempo. E, relendo o texto todo, neste momento, espero que o final jornalístico do último parágrafo não tenha estragado tudo.

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