terça-feira, 5 de agosto de 2008

Porcelana chinesa?

O espetáculo olímpico, eu confesso, dificilmente consegue atrair a minha atenção por mais do que alguns poucos minutos. Na verdade, o bombardeio jornalístico constante, a euforia ufanista desproporcional e a quantidade de informação desnecessária e incompleta chega a ser (na minha modesta opinião) nauseante. Afinal, me parece um tanto estranho o torpor coletivo causado pelo evento - o espetáculo do esforço financeiro e logístico das nações do mundo, com seus super-homens talhados à suor, dinheiro e tecnologia. Talvez o fascínio se esvaia na fumaça da euforia alheia, mas não estou bem certo.

Por outro lado, ignorar o evento olímpico não parece muito inteligente e também não parece muito justo: there's more to the picture than meets the eye. Sem muito esforço, por exemplo, podemos relacionar a história das Olimpíadas com a Política Mundial. A Guerra Fria está representada - indiretamente - na competição entre os EUA e a União Soviética pela supremacia olímpica. O capitalismo e o socialismo, representado por homens e mulheres, se confrontavam nos campos de batalha cuidadosamente mediados do esporte, como em uma batalha antiga, como um duelo de cavalheiros vitorianos. E os resultados destas civilizadas disputas certamente eram transformados em recursos retóricos para exaltar uma ou outra nação ou ideologia. Hitler certamente tentou utilizar a Olimpíada de Berlim, em 1936, como um estandarte para a supremacia ariana e até mesmo um boicote já era ensaiado naqueles tempos. Como o boicote é aventado agora, em relação à China.

O gigante chinês cresce diariamente, diante dos olhos incrédulos do Ocidente. Falar da China sem utilizar palavras como censura, trabalho precário, Tibete ou imperialismo é quase impossível. O boicote, é verdade, assume agora outras formas. Nos tempos de transmissão televisiva em tempo real, internet e mídia participativa, o boicote é mais do que nunca, uma prerrogativa dos espectadores. Por um lado, pelo fato de que os atletas são cada vez menos influenciados por ideologias - não existem mais ginastas comunistas e os atletas cubanos andam fugindo sempre que possível. Mas além disso, é preciso considerar o custo de um boicote na carreira de um esportista, em tempos de alta perfomance e competição: abandonar uma Olimpíada pode significar ostracismo e aposentadoria precoces. E as manifestações em praças ou nos estádios serão, com certeza, acompanhadas de perto pelas autoridades chinesas. O boicote às Olimpíadas de Pequim, deste modo, dissemina-se predominantemente na noosfera - no mundo das idéias e da informação. Internet, mídia escrita e televisiva.

Para mim, aderir ou não ao boicote não é exatamente uma questão relevante. Provavelmente eu realizaria o meu próprio boicote através do desinteresse, excetuando-se talvez uma ou outra espiada em nome da curiosidade e do interesse pelos aspectos técnicos de alguns esportes. Acompanhar o evento de perto implica em dispender muito tempo e esforço que considero melhor empregado com outras "bobagens". Eis o meu boicote: o boicote do pijama, da preguiça.

Pensando em termos práticos, atualmente um boicote à China é - com o perdão do trocadilho - uma tarefa olímpica. Basta lembrar que boa parte de nossos eletrônicos, nossos acessórios de vestimenta ou utensílios domésticos são fabricados na China. Os motivos do boicote podem ser nobres, mas por qual motivo eles deveriam se restringir aos jogos olímpicos? A China certamente é um governo autoritário; a China certamente possui condições de trabalho e de qualidade de vida lamentáveis; a China provavelmente exerceu um tipo de imperialismo com a invasão do Tibete. Mas, no final das contas, deixar de assistir os jogos vai mudar o mundo? As redes de televisão do mundo já pagaram pelos direitos de transmissão dos jogos, os jornalistas já estão perambulando por lá, o McDonald's vai vender seu lanchinho temático com o mascote dos jogos, o mundo gira e amanhã (eu espero) o Sol vai nascer novamente. Não se trata de imobilismo simples e direto, mas de uma forte intuição indicando que o boicote aos jogos olímpicos chineses é tão espetacular quanto o próprio evento. Tem muito mais de pirotecnia social do que reflexão. Neste sentido, partir da boa intenção para a ignorância é muito fácil e rápido.

É óbvio que as liberdades individuais devem prevalecer, seja para os que querem boicotar ou para aqueles que querem desfrutar os jogos olímpicos. No entanto, insisto que o princípio dos boicotes é, em si, impraticável. De boicote em boicote inviabilizaríamos o mundo, tal qual o conhecemos. Strauss compôs o Hino Olímpico de 1936, a pedido do Reich, e ainda assim suas obras são ouvidas e admiradas por suas qualidades intrínsecas, ao invés de serem menosprezadas pelas falhas de caráter de seu criador. Eu prefiro acreditar que a Humanidade ganhou ao não boicotar Strauss, mas sempre há margem para discussão.

E enquanto isso, a Olimpíada segue. Com boicote ou sem boicote. Ainda bem que o Sol vai nascer amanhã...

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