quarta-feira, 25 de junho de 2008

Para não dizer que não falei das flores...

Na última vez que escrevi, meu texto estava - explicitamente ou implicitamente - condicionado por uma crença pessoal. De fato, acho que foi até um pouco de orgulho: eu não consigo me sentir bem quando percebo que jornalismo de má qualidade está sendo confundido com Sociologia. É um pouco injusto que o esforço de estudantes e profissionais das Ciências Humanas sejam invalidados assim tão facilmente. É claro que um Mainardi tem uma trajetória de vida e que não chegou onde está sem esforço, mas o esforço dos cientistas sociais é muito mais específico e deveria ser um argumento a favor da sua legitimidade nas discussões sobre o mundo social.

Se eu arriscar e começar a construir hipóteses a respeito em um texto de 300 palavras, vou estar emulando o efeito Mainardi; meu argumento baseia-se justamente na idéia contrária. Então, em nome do bom senso e da coerência, vou me limitar a um argumento apenas, porque ele justamente diz respeito aos cientistas sociais, sejam eles sociólogos, economistas, historiadores e assemelhados.

Nós, cientistas sociais, sofremos de um grave defeito. A hubris (do grego antigo ὕβρις, insolência) é um traço quase onipresente em nosso discurso, seja na maneira como definimos os "problemas sociais", seja quando enveredamos o caminho das proposições, das fórmulas para criar um mundo melhor. Muitas e muitas vezes, nossa "classe" leva o argumento da legitimidade concedida pelo argumento científico até um extremo perigoso. Sim, devemos ser considerados como emissores qualificados sobre hipóteses e análises sobre o mundo social, mas tenho certeza quase absoluta que não devemos tentar instituir uma ditadura do pensamento social.

No melhor estilo parabólico de Jesus Cristo, vou tentar exemplificar o argumento (e a moral por detrás dele) da seguinte maneira: Karl e Pierre são dois sociólogos de tradições ligeiramente diferentes. Enquanto Karl é um pensador crítico ao sistema capitalista e suas maldades, Pierre é menos audacioso e mais ponderado; para alguns poderia beirar a inércia. Karl acredita que as intenções das pessoas no mundo capitalista são guiadas por dois tipos de forças (por sinal, invisíveis) - a ganância por lucro da classe capitalista e a onipresente alienação, que serve para distanciar o trabalhador do produto de seu esforço, mas também o torna uma espécie de máquina-viva, sem muito controle sobre seus gostos, preferências ou intenções. A cultura, os costumes e as interações entre as pessoas - segundo Karl - estão condicionadas severamente pela maneira como a sociedade organiza-se economicamente ou para a produção de bens e sua reprodução. A classe burguesa explora o trabalho alheio e os proletários, por conseqüência, são explorados e dominados. Eles podem não saber disso, mas Karl está muito certo de que é assim que funciona o mundo.

Pierre, por outro lado, prefere não assumir conclusões prévias. Existem por aí regras e estruturas que condicionam a vida social, mas Pierre prefere uma postura mais "frouxa". O componente da exploração capitalista pode estar presente nos construtos lógicos de Pierre, mas dificilmente terão um papel central. Ou melhor, dificilmente serão a causa única para determinada conformação social. Para ele, as pessoas não são sempre ingênuos marionetes nas mãos de uma força maior. De fato, o conceito de "ator social" não vem do nada; as pessoas atuam, elas possuem uma certa capacidade e autonomia para escolher os rumos de sua vida e sua opinião sobre o que é a sociedade. Sobretudo, eles estão por aí para serem ouvidos, para manifestarem suas opiniões.

Convém salientar que nosso dois personagens são imbuídos das melhores intenções.

Um belo dia, Karl e Pierre conversavam em um bar sobre, digamos, uma partida de futebol, transmitida pela televisão. Obviamente, para Karl aquilo era uma estupidez. A partir do princípio lógico do evento - 22 homens correndo atrás de uma bola de couro - e continuando pelo absurdo da mobilização de recursos e de tempo precioso para a apreciação daquilo, Karl estava certo de que aquilo é uma burrice completa. Além dos 22 esportistas que estão ali tornando o espetáculo possível, outros milhões empenham-se idiotamente em acompanhar inertes e passivos o desenrolar da competição. Poderiam estar ocupados com elucubrações sobre a miséria de sua vida, a exploração, a injustiça. Poderiam estar ocupando aqueles 90 minutos para ler um belo livro. Mas não! Estão ali, alienados e domesticados.

Pierre argumenta que Karl está enxergando as coisas por apenas um ângulo. Sim, eles podem estar alienados, dóceis e domesticados. Pierre não nega esta possibilidade. Mas, para ele, a riqueza do mundo social está justamente na infinidade de possibilidades. A cultura e os costumes se formam e se recriam através de muitos elementos e argumentar que a sociedade se mantém, se move e se define por apenas um fenômeno é de uma tacanhice preocupante. O próprio entendimento e argumentação que estes telespectadores supostamente inertes realizam acerca do futebol é, na verdade, uma maneira rica de entender as coisas. Ao ouvir, por exemplo, duas pessoas conversando sobre futebol, sobre a estrutura social que o mantêm, os costumes que ele cria, os laços de rivalidade e afetividade que ele proporciona, os sociólogos poderiam construir uma imagem mais clara sobre a sociedade. Aquilo que convencionou-se chamar de "futebol" contém, em si, um mundo rico de associações entre pessoas, que podem ou não estar condicionados pela lógica capitalista, mas que não devem ser resumidos a isto.

A conversa entre os dois sociólogos continua e vai se inflamando. Karl sendo absoluto demais e Pierre enveredando por um subjetivismo igualmente arriscado. A discussão poderia durar horas. No final, nenhum dos contendedores convenceu-se do argumento alheio. Ambos apóiam-se em argumentos provenientes da lógica científica: de um lado, a prevalência da lógica; de outro, a eminência da experiência empírica. Não há desempate.

Para piorar, o orgulho vai consumir os dois sociólogos. Assim que deixaram o bar (em parte pelo início de uma partida de futebol que seria exibida na televisão do estabelecimento) já iam elaborando mentalmente os argumentos para um artigo que escreveriam criticando a opinião alheia. Pierre, por conta do relativismo inerente à sua formação, desistiria logo. Na sua opinião, era melhor entender a opinião de Karl do que tentar convencê-lo. Mas Karl... bem, assim que chegou em casa e sentou-se em seu computador, Karl foi assombrado pelo espírito de Mainardi e dedicou algumas horas do seu tempo (o que um aficionado por futebol pensaria ser um tanto estúpido) para escrever um artigo tão maniqueísta e absoluto quanto aqueles da revistas Veja. A única diferença é que, como em um espelho invertido, ele criticaria a essência daquilo que está contido na publicação burguesa. Muda o conteúdo, mas permanece a forma. Karl e Mainardi não duvidam ou titubeiam um segundo sequer. Eles sabem como o mundo é e como ele deve ser. Karl, porém, usa uma pitadinha de discurso científico para tornar o seu texto menos questionável.

E assim, como o futebol que é imposto por entidades ou forças exteriores à classe operária, lá vai Karl: o futebol é uma imbecilidade e um artigo científico é uma pérola negligenciada. Quisera Karl que suas idéias fossem tão admiradas quanto o esporte bretão. Pouco importa se as pessoas sequer pediram para serem resgatadas do obscurantismo. Karl está certo de que é um misto de herói e intelectual incompreendido. Quatro anos de graduação, um mestrado e um doutorado no exterior garantem que Karl está certo.

Fim.

Acho que a parábola não precisa de explicação, mas em todo caso aí vai um resumo: não seriam alguns dos sociólogos (ou economistas, ou historiadores), amparados pelo discurso científico, tão arrogantes quando o periodista da revista burguesa? O treinamento científico garante realmente uma visão privilegiada da realidade ou sofremos de uma crise de inferioridade aguda, transformada em uma tendência para a fanfarronice? Onde termina nossa importância como especialistas e começa o lado negro (!) da hubris?

Atingi meu objetivo que foi evitar a impressão de um corporativismo extremo, possivelmente associada ao texto anterior. Acho que no final das contas sou como Pierre; não consigo pensar em termos absolutos. Na minha opinião, o mundo social não se parece com uma figura geométrica simples, com três, quadro ou oito lados. O mundo é como um caleidoscópio.

3 comentários:

iconoclasta disse...

Muito bom.
Muito analitico.
(nao preciso dizer mais.)

O FURBservador disse...

Seria engraçado (e sarcasticamente típico de mim) dizer: "o que não faz um jogo do parmera...", entretanto seria reducionista demais, haja visto ser o evento contribuinte criativo da formulação do exemplo, mas nem de longe figura central da articulação argumentativa. Como um não tão adepto do "bem construir" absoluto, identifico nos teus 2 últimos posts um retorno à particular viceralidade dos editoriais da Folha do CACS. Agradável retorno.

Abração "Rolo"

Rolo disse...

Agradeço os comentários, senhores...

Tulio, já que tocaste no assunto... como anda nossa empreitada editorial do CACS? Precisa de alguma ajuda?

um abração!
Rolo