quarta-feira, 24 de setembro de 2008

"Você deve ser a própria mudança que deseja ver no mundo" (Gandhi)

Normalmente sou contra lições de moral, daquelas que caem para o lado da auto-ajuda. Certo e errado são conceitos extremamente flexíveis e considero que ninguém sério e ponderado pode querer, por vontade própria, ser um modelo de comportamento. O exercício da prescrição moral envolve um ego expansivo e uma percepção falha a respeito das próprias ações. Prefiro não ser assim.

No entanto, diariamente os axiomas morais nos atingem como um soco no estômago: "os políticos são ladrões descarados", "fulano deveria ser punido severamente", "ele é um sem vergonha". Fica no ar a sensação de que nosso país é corrompido e corroído diariamente por uma escória parasita. Existem ainda alguns que apostam na Lex Talionis - olho por olho, dente por dente. Se o acusado for um pobre coitado, tanto melhor: cortem-lhe as mãos, ceguem-no. A pena de morte mora ali ao lado.

Tenho a vívida sensação de que algumas esferas de nossa sociedade empregam este discurso com maior freqüência e com mais intensidade. A classe média brada por uma justiça de guilhotina; os ricos parecem preparados para aprovar a punição na arena de gladiadores. O pobre, que pouco tem acesso à justiça, pode até murmurar uma ou outro absurdo, mas sabe que não é ouvido. Mas jornais e telejornais do tipo "espreme-sai-sangue" são feitos pela classe média e para a classe média. Os ricos, é claro, assistem TV à cabo e não perdem tempo com o populacho.

É uma hipocrisia dolorosa. Estou aqui, um simples menino do interior, vivendo no centro econômico e cultural da nação - o Sudeste maravilha, a sagrada UNICAMP. Formam-se aqui as futuras gerações, os futuros governantes. Os futuros formadores de opinião, nossos futuros médicos, dentistas, filósofos, sociólogos e artistas são produzidos aqui. A suposta inteligentzia. E ainda assim a hipocrisia é reinante, generalizada. Formam-se adeptos da lei de talião, formam-se os apresentadores e jornalistas hematófagos.

E hoje eu testemunhei a hipocrisia.

Eu voltava da UNICAMP, de carona com um amigo. Minhas preocupações eram simples: chegar em casa, dormir, estudar, comer. Em determinado momento, nossa conversa foi interrompida por uma imprudência no trânsito, logo à nossa frente, ainda dentro do campus. Dois veículos transitavam muito próximos e uma freada brusca quase causou um acidente. Observamos de longe e meu amigo comentou o incidente. Confesso que, um tanto egoísta, não deixei aquilo sequer se tornar uma breve preocupação em minha mente. Não seria a ausência tática de curiosidade e preocupação que nos mantém sãos em um mundo tão confuso?

Alguns poucos minutos depois, porém, a situação agravou-se. A persistência com a imprudência fizeram com que a motorista que vinha na traseira realizasse uma manobra de ultrapassagem, atropelando uma pessoa no processo. Repito: atropelando uma pessoa, arremessando-a para o alto, fazendo com que ela pousasse bruscamente no chão. Imediatamente, meu amigo parou o veículo e descemos. Chamamos a segurança do campus. Assistimos tudo (as chamadas para o SAMU, a chegada da ambulância, o choro e dor da atropelada, o choro e preocupação da motorista) em alta velocidade, pois aquilo que chamam de adrenalina provavelmente estava agindo.

Não vou (e não quero) transcrever a cena inteira, mas não irei me abster de dois detalhes muito importantes. Em primeiro lugar, a vítima do acidente. Parecia ser uma mulher simples, uma trabalhadora, pobre, sem instrução. Sua bolsa barata e seu casaco feio ali, ao seu lado. E ela? Deitada, gemendo e balbuciando, sangrando e babando, um hematoma enorme na testa. Atropelada por uma universitária, com carro importado e cara de menina - uma dolorosa e distorcida representação da realidade brasileira, onde os ricos fodem os pobres, sem dó nem piedade.

Ela recebeu, é claro, socorro médico. A cena, em si, já é chocante. Mas a revolta foi maior. Ao redor da patricinha (e neste ponto ela já não merecia mais o benefício da dúvida ou a amenização de meus preconceitos) aglomeravam-se meninos e meninas bonitos, perfumados, penteados, ingênuos, em forma, com boas roupas. Alguns estavam até sorridentes. Sor-ri-den-tes. A única que chorou, de verdade, foi a motorista. Os outros estavam ali, meio que como se a coisa toda fosse muito pitoresca, mas inofensiva. Como se quem tivesse sido atropelado fosse um cachorrinho de madame.

Percebemos, eu e meu amigo, que o outro carro desaparecera. Percebemos que algo iria acontecer. Havia um cheiro estranho no ar. Assim que a polícia chegasse, os homens de uniforme, o carro com sirene, pistolas, intimidação e a caneta, para registrar o boletim de ocorrência, tudo seria amenizado, aliviado, minimizado. Decidimos permanecer por ali. Algo nos dizia para ficar por ali.

Foi o que aconteceu. Eu estava muito próximo, quando ouvi o policial colhendo o relato da motorista. E eu ouvi claramente quando ela falou que não sabia quem era o outro motorista. Que havia sido "fechada". Que era inocente. Senti-me confuso, irritado, indignado. Senti nojo de fazer parte da Humanidade. Milhares de anos para construirmos uma civilidade tão vã, tão frágil, tão etérea? De que valem as prescrições morais? Onde estão as noções de certo e errado vomitadas diariamente? As regras de civilidade são, afinal, apenas um discurso vazio?

Por fim, acho que fizemos a coisa certa. Enquanto a motorista conversava com sua apavorada mãe, recém-chegada na cena do acidente, nos aproximamos e perguntamos, com a voz meio tímida, entre os lábios, onde estava o outro motorista. Ela confessou, talvez por conta do choque, que não queria envolver o seu amigo em problemas. Nossa resposta veio rápida: que amigo é este que vai te deixar com toda a responsabilidade pelo incidente? Que tipo de caráter tem uma pessoa que foge covardemente, sem sequer dissimular alguma preocupação? Que amizade é essa que vale uma mentira deste calibre? Fomos rudes e intrometidos, mas fizemos o que consideramos certo e praticamente imploramos para que ela relatasse a verdade.

Não me considero um exemplo de cidadão imaculado. Durante minha vida já cometi uma boa cota de erros, infrações e deslizes. Não quero ser o Che, nem Gandhi, nem Luther King. Mas não conseguiria dormir sereno sem jogar aquela verdade na cara da menina ingênua. Diabos, afinal ela quase havia matado alguém, por conta de uma infantilidade, uma brincadeira, uma frivolidade. Sua mãe, percebendo a dimensão do problema, nos apoiou. Não posso imaginar a sua decepção, mas ela tomou uma atitude madura e consciente. O boletim de ocorrência foi, afinal, corrigido.

Qual será o resultado final disso? Não sei. Pode ser que a punição seja leve. Pode ser não ocorra punição alguma. Mas, apesar de chegar em casa arrasado, tive uma certa satisfação lânguida de poder jogar a bosta de volta para seus produtores, de dar um choque de realidade em alguém. Me vinguei do Datena e de todos os vampiros da mídia. Me vinguei do editor do Jornal de Santa Catarina. Desforrei-me dos colegas ricos que zombavam de mim, pelas costas e pela frente, na escola e no clube. Me vinguei de todo playboy que desperdiça o dinheiro público na Universidade. Eles têm tudo: os carros, os bons empregos, as mulheres plásticas da revista e da coluna social, mas eles não podem comprar a dignidade.

Não me sinto muito bem, mas tenho a impressão que segui o conselho do Gandhi: "você deve ser a própria mudança que deseja ver no mundo". Bem, meu velho e finado mártir indiano, saiba que eu tentei.

2 comentários:

Rafael Bennertz disse...

Sem as piadas que normalmente vem com esta frase te digo acima de tudo tú és um bom moço...

O que me incomoda é não saber se ficaria indignado mas intimidado pela ostentação brutal da classe média ou se mesmo assim agiria de forma semelhante.

==> Top bloke me friend...

Blog do Seagal disse...

Boa rolo, acho que aqui sem comentar o fato em si pq evidentemente lhe dou toda a razão e acho q representas alguma mudança sim.

mais o texto ta fodastico, misturando a correria do dia a dia com a insatisfação diante da hipocrisia, bom pra caralho!