quinta-feira, 14 de maio de 2009

"Tomorrow will be the most beautiful day in Raymond K. Hessel's life"

E agora? A violência urbana me atingiu, me pegou pelos cabelos, me chacoalhou, me jogou no chão e me deixou feito um cachorro tonto. O que fazer? O que pensar? De quem é a culpa?

1.

Na última terça, minha casa aqui em Campinas foi invadida por um grupo de indivíduos armados, que renderam a todos, nos trancaram no banheiro, reviraram nossos quartos e nos subtraíram dos objetos mais caros e de algumas coisas com valor sentimental. Em quinze minutos, levaram as coisas que demoramos meses (anos?) para acumular. Mais do que isso, deixaram um certo trauma de ser acossado dentro do próprio ambiente doméstico. Fiquei sob a mira de pistola na minha cozinha e no meu banheiro... é possível habitar estes cômodos sem a eterna recorrência mental da situação? O sentido de segurança provido pelos muros, portas, trancas, grades e paredes da casa é possível de ser restaurado?

2.

A primeira, natural e esperada reação (depois do susto, é claro) é a revolta. Depois, vem a busca pela motivação, pela racionalidade, pela lógica de tudo aquilo que aconteceu. Frequentemente, tudo isso se mistura e somos levados a acreditar em respostas fáceis e rápidas. O outro é uma ameaça, logo não é merecedor de ser chamado de "humano" - torna-se uma força da natureza, um desastre que se abate sobre os incautos, um problema a ser resolvido. Uma entidade a ser combatida.

Não digo que esqueci o que me fizeram: ainda dói, ainda incomoda. Não desejo que ninguém passe pela experiência que passei. Mas se a civilidade e a humanidade são qualidades que faltaram em meus agressores, não vejo motivo para purgá-la voluntariamente da minha psiquê. Mais do que isso: qualquer coisa que aconteça de ruim com meus agressores somente servirá para arregimentar novos pobres coitados para dentro do ciclo de violência deste pobre país de terceiro mundo.

3.

Para mim, cognitivamente falando, os assaltantes são apenas isso. Assaltantes. Me escapam as verdadeiras motivações, histórias de vida, problemas, alegrias e eventuais possíveis qualidades humanas. Inversamente, o que somos nós para os assaltantes, neste caso específico? Se para mim, eles encaixam no estereótipo do agressor, para eles nós somos a imagem da exclusão e da injustiça social. Eles jamais vão saber que tive que merecer dolorosamente o salário de bancário que usei para comprar o meu computador. Eles jamais vão saber que não ganho mesada de mamãe e papai. Fui simplificado (sim, injustamente) à condição de um estudante de classe média alta, que faz faculdade, que tem confortos domésticos, boas roupas, estabilidade. Uma vida de comercial de margarina que lhes foi negada a priori. Eu vivo uma vida, e tenho acesso aos bens cobiçados da nossa sociedade, que eles (sem trocadilhos) vivenciam e consomem apenas marginalmente. Por força, por roubo, por agressão. Por vias tortas.

4.

Para citar a sabedoria popular, "o buraco é mais embaixo". Sim, eu gostaria que os responsáveis fossem encontrados e punidos de acordo com os rigores da lei, esta lei que tacitamente aceitamos ao viver em uma sociedade ocidental democrática. Somos, sim, dotados de capacidade de auto-determinação, mas também somos forçados pelos rigores do ambiente onde nascemos e crescemos. Esperar que todas as pessoas que só vivenciaram ódio, carência, ignorância e violência consigam extrapolar esta origem e se tornem exemplos de conduta é ingenuidade. O mundo não é só flores. E muitas, muitas e muitas vezes os "cidadãos de bem" são tão doentes, vis e distorcidos quanto estes pobres coitados drogrados e analfabetos que servem de bucha de canhão para os barões da droga ou que não compreendem o mundo em que eu vivo.

A vizinhança onde moro é patrulhada por um serviço de vigilância privada. A própria noção deste serviço é uma afronta filosófica: na prática, privatiza-se a rua (o espaço público "por excelência"), e transfere-se voluntariamente e mediante pagamento, uma obrigação do Estado para grupos privados, cuja a idoneidade é altamente questionável. Na prática, do ponto de vista do "consumidor" do serviço, transfere-se o risco desigualmente: os que não podem pagar, devem arcar sozinhos com os problemas sociais do país? De que maneira, além da lógica especificamente mercantil, isto pode ser moralmente válido? E por parte da empresa de segurança? Quem lhes atribuiu o direito de proteger alguns, enquanto ignoram os problemas de outros?

5.

Em um mundo ideal, estas questões não seriam sequer necessárias. Mas o mundo onde vivemos é triste, "desfuncional", injusto e caótico. Lamento por ter sido ameaçado com uma arma de fogo, e lamento ter perdido muito do pouco que eu tinha. Não me voluntario para ser alvo da violência e nem para entregar as coisas que me custaram tempo e esforço para obter. Mas me recuso a acreditar que ódio e violência sejam respostas válidas para o problema. Não quero pena de morte e não quero redução da idade penal. Não quero voltar para os tempos antigos, do "olho por olho, dente por dente". Gandhi já nos alertou que, se formos por este caminho, ficaremos todos cegos (e, se me permitem o adendo, todos banguelas!).

E, vivendo neste mundo cão, não preciso nem ao menos me dar ao trabalho de procurar minha vingança ativamente. Sociólogos, estatísticos e assistentes sociais já deixaram muito claro que a vida das pessoas que estão envolvidas com o crime organizado é curta. Em breve, ou tomam tiro, ou morrem de alguma doença repugnante, ou caem na cadeia e morrem esfaqueados... a lista de possibilidades é imensa. E é triste: existências curtas, com um sentido vazio, imediato, bruto.

O que fizeram comigo não pode ser reparado, é verdade. Me sinto privilegiado por ter passado por isso e ainda assim estar vivo. Mas me recuso a prolongar a intolerância, o preconceito e, principalmente, o medo e a falta de esperança na raça humana. Por enquanto, faço o que posso fazer para me prevenir: ainda vou ser um refém de tudo isso, da paranóia, da desconfiança. No fim, se eu não conseguir, me mudo para o meio do mato, viro ermitão.

Mas, sinceramente, prefiro acreditar que ainda tudo isso tenha um fim. Prefiro pensar que meus agressores são tão vítimas quanto eu, e desejo que meus preconceitos não sejam potencializados pela violência que passei. Eu quero viver em um mundo bom, algum dia. E desejo isso para todos.

Ainda abalado, mas sempre otimista.

mrs