terça-feira, 15 de abril de 2008

Orientação política e orientação disciplinar

Eu sei que a minha proposta era quase outra: incluir aqui algumas observações de cunho quase antropológico sobre o ambiente do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT). Ainda não consegui chegar a este nível de refinamento. Em primeiro lugar, ainda que minha condição de recém-chegado permita algum distanciamento, é difícil apreender algumas sutilezas quando estamos envolvidos, interessados e inseridos em determinado contexto; a própria condição da existência de um analista (o efeito do observador?) pode modificar a dinâmica do grupo. As pessoas se comportarão e se comunicarão autênticamente se souberem que são o objeto de avaliação de terceiros? Elas serão realmente espontâneas ou buscarão respostas estudadas?

Além disso, meu papel participante nas atividades do Departamento pode levar à conclusões induzidas, seletivas. Em outras palavras, posso ressaltar as evidências sociológicas que reflitam ou corroborem apenas meus conceitos e teorias prévias. Isto, é claro, pode invalidar completamente o meu relato, por mais elaborado e refinado ele possa parecer na superfície. Seria como produzir reflexões baseadas no senso comum sociológico. Se for para revestir meus preconceitos com um discurso semi-sociológico, é melhor nem produzir nada.

Logo nos primeiros dias em que estive aqui, notei (muito mais por instinto do que por bases empíricas) que o corpo social do Departamento (e, portanto, dos programas de pós-graduação) é muito heterogêneo. Por tratar-se de um área multi-disciplinar, pessoas com formação em diversas áreas distintas estão agrupadas em torno de um programa mais ou menos definido por seu tema e objeto de pesquisa. O ponto em comum é um objeto relativamente genérico, denominado de "Política Científica e Tecnológica". É claro que os consensos paradigmáticos em outras áreas do ensino e pesquisa universitárias são muito mais uma idealização do que uma realidade, mas é inegável que a variedade disciplinar do DPCT é um traço a ser ressaltado.

Ao ouvir alguns comentários de corredor (e aqui devo ressaltar o emprego das minhas técnicas de "etnografia de corredor" que remontam ao tempo da graduação) aferi que algumas pessoas percebiam uma distinção entre alunos e professores que operava em outro nível: havia uma clara noção de que as pessoas estavam também divididas e diferenciadas por conta de sua orientação política, representada pelos extremos também idealizados de esquerda e direita.

Partindo destas duas distinções (que chamarei aqui de "eixo de orientação política" e "eixo disciplinar") elaborei o seguinte quadro:



O eixo horizontal indica o suposto posicionamento político dos atores sociais, partindo da esquerda (caracterizada por sua aproximação com o socialismo, movimentos sociais, etc), e chegando na direita (predominantemente "liberal", com uma certa ética empresarial subjacente). No eixo vertical está representada a distinção da matriz disciplinar empregada pelos atores no trato do objeto de pesquisa genérico e compartilhado. Partimos das chamadas "ciências duras" - física, matemática, engenharias - presentes muito mais como uma influência de formação prévia do que exatamente um referencial disciplinar diretamente empregado, passamos pelas Ciências Sociais Aplicadas - Economia, Direito, Jornalismo - e chegando às Ciências Sociais - Sociologia, Antropologia - e, como um ponto extremo no gráfico, a Filosofia. Em termos gerais, proponho que todos os envolvidos com ensino e pesquisa no DPCT podem ser localizados no gráfico, utilizando determinados critérios que os posicionem em relação aos dois eixos.

Na figura existem áreas demarcadas por pontos tracejados. Elas correspondem a três grupos claramente identificáveis no contexto do Departamento. Na verdade, o GAPI (Grupo de Análise de Políticas de Inovação) e o GEOPI (Grupo de Estudos sobre Organização da Pesquisa e Inovação) são grupos estabelecidos e relativamente formais, que aglutinam atores que possuem orientações semelhantes. O terceiro grupo indicado, dos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia, é muito mais uma extrapolação do modelo do que um grupo propriamente dito. A inserção destes grupos no esquema deve-se a dois motivos: a) o próprio quadro conceitual surgiu de reflexões parcialmente provocadas pela análise do discurso de membros dos grupos. Isto significa que o gráfico pretende ser apenas uma sistematização da própria clivagem que os atores fazem de seu contexto; b) trata-se de um mecanismo de teste e validação do esquema. Ao avaliarem o gráfico, os membros dos grupos poderão emitir juízos de concordância ou discordância, fornecendo elementos adicionais à análise.

Mas qual é finalidade deste quadro? Inicialmente, ele pode ser empregado como o ponto de partida de um mapeamento predominantemente estatístico. Poderíamos, por exemplo, tentar verificar índices bibliométricos, de citações ou participação em congressos, identificando prioritariamente a produtividade e prestígio. Ele poderia ser empregado também no processo de avaliação, justamente em termos disciplinares e políticos, do output acadêmico do Departamento, ou seja, na identificação do estado sócio-técnico atual deste campo, explicitando divergências e convergências entre os atores e grupos. De todo modo, serve como um "artefato" temporário para a visualização de determinados elementos de uma realidade social circunscrita que mereceria, certamente, análises mais dedicadas e detalhadas.

Como um desdobramento indireto do quadro, estou cogitando a possibilidade de testar outra hipótese: ainda que os atores se diferenciem, se relacionem e até mesmo antagonizem de acordo com os elementos apresentados anteriormente, a maioria deles possui um background em comum: a origem de classes média (e, em menor grau, classes altas). Esta origem determinaria, por exemplo, seu acesso ao sistema de ensino superior público ou sua maior aptidão com o jargão culto/científico, mais ou menos de acordo com o exposto por Bourdieu, em sua obra Os Herdeiros - Os estudantes e a cultura.

Obviamente, isso vai ficar para outra hora...

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Rápidas observações sobre a alimentação e a identidade "étnica"

Por algumas vezes o tema foi mencionado aqui, mas nunca discutido propriamente. Longe de Santa Catarina, ressalto (algumas vezes conscientemente, outras não) alguns traços da minha personalidade ou alguns costumes para parecer mais catarinense, para reforçar minha identidade, quando em oposição aos paulistas. A linguagem, a postura diante de um ou outro fato da vida cotidiana, ou mesmo o modo de vestir são evidenciados neste processo. Mas é através da alimentação que realmente percebo que a minha identidade de catarinense do Vale se coloca antes da minha identidade de brasileiro.

Já preparamos cuca de banana e oferecemos para muitas pessoas. Trata-se de uma maneira de adequar a rotina diária daqui com os hábitos alimentares que possuíamos previamente. Mas, além disso, ao oferecermos a cuca para outras pessoas, tentamos convencê-los de que o hábito alimentar da cuca é bom, é legítimo. Com a cuca tentamos, ao mesmo tempo, demarcar nossa identidade e "colonizar" a culinária paulista. Se por um lado buscamos referências familiares, de nossa socialização prévia, por outro negamos a culinária local ou hierarquizamos os hábitos alimentares de duas regiões do Brasil, colocando os nossos próprios hábitos em uma posição privilegiada.

Alguns exemplos sobre as diferenças alimentares: um dia, o Rafael tentou comprar nata para cozinhar (outra cuca!). Não obteve sucesso. A nata industrializada, empacotada e consumida das mais diversas formas no Vale do Itajaí por aqui nem existe. As caixas de leite por aqui trazem, no verso, receitas específicas com os ingredientes típicos da região, como a mandioquinha. Pepino em conserva? Acho que nunca vi por aqui.

E então, a grande questão: até que ponto devo manter minha identidade étnica-alimentar? Devo ser um xiita culinário ou devo fazer como o adágio popular, que diz que estando em São Paulo, devo me alimentar como um paulista? Olhando a questão por esta ótica, fica mais fácil compreender o movimento dos gaúchos, que saem montando franquias (os CTGs) pelo Brasil inteiro, ou mesmo a disseminação do fast food americano. Somos todos, em maior ou menor grau, condicionados por nossa socialização primária e, sobretudo, temos a tendência de tentar mudar o mundo para torná-lo mais parecido com o nosso ideal.

Ou não?

(Estas foram algumas rápidas observações sobre a alimentação e a identidade "étnica". A seguir, voltamos com nossa programação normal)

terça-feira, 8 de abril de 2008

Vida de laboratório, vida do Departamento

Em 1979, Bruno Latour e Steve Woolgar publicaram um livro que tornou-se um marco nos Estudos Sociais da Ciência. A obra chama-se Laboratory Life e analisa antropologicamente o laboratório do vencedor do prêmio Nobel, Roger Guillemin, no Instituto Salk, na Califórnia. Trata-se de uma vasta observação de como a Ciência funciona internamente, levando em conta os procedimentos de um laboratório científico, a relação entre os cientistas, a discreta luta por prestígio, a divulgação dos resultados obtidos. O objeto de análise é o laboratório e, em um escopo maior, as ciências naturais.

Em um movimento de reflexividade, este tipo de análise etnometodológica poderia ser aplicada também às ciências humanas e sociais? É possível analisar os cientistas humanos e sociais pelo mesmo método? Qual é o locus da atividade científica nestas áreas, digamos, menos "duras"?

Estou convencido que, por conta de uma estratégia de auto-preservação, este tipo de análise reflexiva poucas vezes é empregada pela sociologia ou, mais especificamente, pelos estudiosos da Ciência e Tecnologia, acerca de seu próprio ofício. Construímos, afinal, nossa própria caixa-preta. Não pretendo tomar para mim o projeto de realizar esta análise. Ainda não. Eventualmente, porém, acho que vou colocando aqui algumas das minhas observações sobre a vida dos pesquisadores do Departamento de Política Científica, daqui da UNICAMP. O que eles fazem? Como se organizam e como se relacionam? Como "produzem" fatos científicos? Como se posicionam politicamente?

Acho que um relato deste gênero servirá para exercitar o sociólogo que está por aqui, dentro de mim, perdido no mar do jargão da Economia. E, para quem for paciente, deverá servir como uma espécie de diário de campo antropológico; algo como visitar uma tribo exótica de um lugar distante...

Bon voyage!

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Algumas pontas soltas?

Vou começar propondo uma divagação: o que caracteriza nossa vida, nestes tempos atuais? Até onde podemos imaginar, o homem medieval pautava sua rotina pelos tempos da natureza - as estações, os ciclos dos dias e noites, o calendário das festas religiosas. Na Revolução Industrial, ocorreu a submissão aos tempos das fábricas e das máquinas. Horários rígidos, cronometragem, a segregação do espaço do trabalho do espaço da vida privada. E hoje? Quais os ciclos que seguimos? Qual a distinção que fazemos entre público e o privado?

Nossa corporeidade já não importa tanto, eu creio. Com a sofisticação das telecomunicações, da internet e da representação gráfica computacional, somos capazes de modificar a realidade - trabalhar, socializar, exercer nossa afetividade, deixar rastros históricos - sem estarmos necessariamente vinculados a um espaço físico. Nosso self tornou-se móvel e nossas atividades cada vez menos físicas, em um sentido estrito. A pessoa que deixou este "rastro" digital é tão real quanto aquela que conversa em uma mesa de bar. A diferença é que minhas idéias potencialmente podem atingir o mundo todo, sem o deslocamento da minha cansada carcaça.

Por outro lado, nossos tempos e ciclos também mudaram. O ideal de tempos regulados das fábricas e escolas de algumas décadas atrás foi expandido para um conceito de, digamos, "tempo real". A evolução do processo industrial (automação), o progresso do processamento computacional e o fenômeno da decadência da corporeidade nos forçaram a viver em um tempo útil contínuo. Se não preciso mais estar presente fisicamente em um escritório ou em uma biblioteca para realizar uma atividade e se não preciso mais aguardar dias para uma comunicação chegar ao seu destino, tudo acontece ao mesmo tempo agora.

O homem medieval se submetia aos tempos da Natureza. O homem industrial aos tempos da Fábrica. E nós, homens e mulheres do século XXI, estamos submetidos ao tempo real: para alguns, o trabalho, o aprendizado, o lazer, a afetividade e o descanço acontecem simultâneamente, diante de um computador, de uma televisão ou com um telefone celular. Respondemos ao e-mail de nossos namorados e namoradas, falamos com alguém ao telefone, assistimos aos vídeos cômicos do YouTube, nos colocamos a ler textos de autores que publicaram um artigo científico do outro lado do mundo, negociamos nossa posição profissional através do MSN e massacramos inimigos virtuais em jogos on-line. Tudo isso quase simultâneamente e em qualquer lugar que propicie uma infra-estrutura básica de acesso à internet e rede elétrica.

Aqueles que estão submetidos a esta configuração social (e não são todas as pessoas do mundo que o são) organizam a vida em torno da perspectiva de conclusão das atividades, em função do processamento. É um pouco como a lógica informacional: temos uma fila de tarefas, ordenadas por sua entrada em nossa agenda e reordenadas de acordo com suas prioridades. Também podemos processar nossas atividades paralelamente: enquanto escrevo este texto, posso verificar meus e-mails, falar ao telefone, baixar músicas na internet. E algumas atividades, por terem baixa prioridade, vão ficando relegadas aos momentos menos concorridos de nosso tempo diário. Criamos, por necessidade de conviver com esta realidade, um monstro chamado "gerenciamento do tempo".

Ainda não escrevi sobre o Vale. Ainda não escrevi sobre as estradas paulistas e paranaenses. Ainda não escrevi sobre as vagas de idosos no estacionamento do shopping. Ainda não consegui terminar meu artigo. Estas são minhas "pontas soltas", estes são os itens pendentes de minha agenda. Em respeito a eles, escrevi este texto. E, por conta deles, vou ter que reordenar meus tempos mais uma vez.